D. Carlos I
(1863-1908)
O Diplomata
Patrono do Curso de 1982
Talvez para nenhum outro rei de Portugal conflua a memória de uma época de crise e decadência, de infortúnio e a tragédia, como para D. Carlos I[1]. O seu nome ficou, para sempre, associado ao fim de um período de prosperidade e, sobretudo, ao terminus de um Regime, que sucumbiu a uma revolução, em 1910, após uma dolorosa crise política e financeira.
Outro acontecimento ficou, igualmente, de forma inelutável, relacionado com a época em que este monarca governou: o Ultimatum (1890). Repare-se que um e outro facto balizam, grosso modo, um reinado (1888-1908), que foi recheado por acontecimentos políticos, crises económicas e financeiras, revoltas sociais, tanto no panorama nacional como internacional.
A importância que se atribui àqueles dois acontecimentos, que se fez alusão (Ultimato e revolução republicana), acabam por subverter, e até ocultar, o papel político e cultural que D. Carlos deteve ao longo de vinte anos de reinado. O que se fez durante muito tempo foi simplesmente olhar para o seu governo com base nos eventos que tiveram lugar, descurando as grandes tendências económicas e sociais da época, que já se haviam esboçado no período precedente. Os últimos estudos biográficos concluem, afinal, que D.Carlos I foi um dos mais inteligentes e capazes reis do seu tempo.
D. Carlos nasceu em Lisboa, no Palácio da Ajuda, a 28 de Setembro de 1863. Filho de D. Luís I e D. Maria de Sabóia, é educado de forma refinada, nas Artes, nas Letras e nas Ciências. Casa a 22 de Maio de 1886 com a filha dos condes de Paris e neta do rei de França, D. Luís Filipe, D. Amélia de Orleães, de quem vem a ter três filhos: o príncipe herdeiro, D. Luís Filipe, D. Maria Ana e o infante D. Manuel, que haveria de ser rei, o último, antes da revolução de 1910.
Por morte de seu pai, D. Carlos é aclamado rei a 19 de Outubro de 1889, com 26 anos. Avizinhavam-se momentos difíceis. O país, que se encontrava empenhado na construção de um império em África, recebe um ultimato a 11 de Janeiro de 1890 do seu principal aliado, a Coroa inglesa, para deixar de reivindicar a soberania, retirando forças militares aí estacionadas, sobre um vasto espaço compreendido entre as colónias de Angola e Moçambique. Assolado por uma grave crise financeira, que se devia ao elevado endividamento público e ao enorme défice externo da balança comercial, o Governo português acata as ordens britânicas. Não se fizeram esperar as manifestações populares de descontentamento pelo sucedido, o que é logo aproveitado pelo Partido Republicano, em claro alargamento das suas bases. A revolta militar do Porto, de inspiração republicana, que eclode a 31 de Janeiro de 1891, sem êxito, vem precisamente no seguimento de uma onda de descontento social, e de crise da própria identidade nacional (com muitos a clamar "finis patrae"), que varre o país na última década do século XIX.
No campo político, D. Carlos I confrontou-se com vários executivos governativos que não garantiam a estabilidade política e institucional, necessária, ao país. O seu reinado ficaria marcado por um «rotativismo» instável, entre as duas principais forças partidárias – regeneradores e progressistas, cujas elites, que se revezavam no poder e lutavam entre si por lugares de relevo na máquina estatal, colocando o interesse pessoal acima do interesse público, não mostravam ter capacidade, política e técnica, para debelar a grave crise financeira que afligia o Estado.
É consensual considerar-se, justamente, D. Carlos de Bragança, um dos monarcas mais cultos da Europa do seu tempo. Admirável cultivador da ciência e da cultura foi, à semelhança do seu pai e antecessor (característica destes reis da Dinastia de Bragança), um protector da Marinha e da memória que a ela se associa, dos feitos marítimos dos portugueses. A fundação de associações como o Clube Militar Naval ou a Liga naval Portuguesa, tiveram o seu patrocínio. Mas, mais ainda do que seu pai, com resultados muito elucidativos, D. Carlos impulsionou fortemente a investigação marinha, participando pessoalmente, e activamente, nas prospecções do litoral português. Neste campo pode mesmo considerar-se este Rei como um dos pioneiros mundiais nestes estudos, tendo deixado uma ampla obra, resultante das suas investigações. A 1 de Setembro de 1896 tinha início a primeira campanha oceanográfica nacional.
Depois de uma cuidadosa preparação, e auxiliado por um valoroso conjunto de colaboradores, entre os quais o cientista Albert Girard, o iate Real «D. Amélia» zarpava para aquela que seria a primeira expedição científica oceanográfica, nesse ano de 1896. Iriam seguir-se outras campanhas até 1907, com o mesmo fito: estudar a fauna marinha, os recursos piscícolas das águas nacionais, as correntes, a topografia dos fundos marítimos, o reconhecimento dos vales submarinos próximos da costa, nomeadamente na região do cabo Espichel. Os resultados destas investigações receberam rasgados elogios de estudiosos e prestigiadas instituições científicas internacionais, como atestam os diplomas que foram concedidos a D. Carlos, constando os resultados das investigações oceanográficas em quatro livros, que foram sucessivamente editados entre 1897 e 1904.
Se D. Carlos foi um dos pioneiros mundiais no campo de Oceanografia, deve assinalar-se também que se dedicou com notável sucesso a outros ramos da Ciência, como a Ornitologia e a Biologia marinha. É de salientar, ainda, o seu papel no domínio da divulgação científica, dando conhecimento público dos resultados das campanhas oceanográficas, organizando exposições com o material zoológico que recolhia ou com os instrumentos em uso na investigação mar ena pesca. Finalmente, realce-se o seu papel como grande patrocinador de uma instituição como o aquário «Vasco da Gama», inaugurado aquando do centenário (1898) da primeira viagem marítima à Índia de Vasco da Gama.
Rei, detentor de uma vasta cultura, D. Carlos I evidenciou-se, igualmente, como pintor. Os seus quadros, patentes em diversas exposições nacionais, receberam acolhimento favorável da crítica, conquistaram prémios, e contribuíram para a sua nomeação, em 1905, como sócio de mérito da Academia Portuense de Belas-Artes. Para além disso, D. Carlos chegou a conviver de perto com a elite cultural e intelectual coeva, participando em tertúlias. É célebre o grupo «Os Vencidos da Vida», cotando-se entre estes Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Carlos Soveral, Oliveira Martins, que manifestou apoio às suas decisões políticas.
Com a normalização das relações diplomáticas entre a Inglaterra e Portugal, e reatadas as relações bilaterais com o Brasil, D. Carlos vai desenvolver um esforço diplomático meritório, no sentido de granjear prestígio e integrar Portugal no concerto das nações. Visita vários países e acolhe em Lisboa vários chefes de Estado: Eduardo VII de Inglaterra, o imperador Guilherme da Alemanha, Afonso XIII de Espanha e Emílio Loubet, presidente de França.
Em 1906 estavam praticamente concluídas as campanhas de pacificação em África. Líderes militares como Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro, ou Azevedo Coutinho, tinham conduzido com sucesso as forças militares portuguesas, construindo em África, a par de outras potências europeias, um império ultramarino.
Por essa altura, fazem-se sentir os intensos progressos tecnológicos. O carro e o avião fazem a sua aparição; o poder das armas de fogo aumenta; as linhas de comboio alcançam regiões remotas; a telegrafia sem fios revoluciona as comunicações. Politicamente, assistia-se à formação de alianças entre Estados, num clima de discórdia e competição entre nações e impérios. Porém, internamente, nesse ano de 1906, irrompia uma forte crise política, provocada pela queda do governo chefiado por Hintze Ribeiro. D.Carlos intervém, com os poderes constitucionais que tem ao seu dispor. Dá posse a um Gabinete liderado por João Franco, que instaura uma ditadura, encerrando a Assembleia legislativa e suprimindo algumas liberdades. Enfrentando fortes críticas, mesmo de alguns sectores monárquicos, e sobretudo da ala republicana, D. Carlos vê a suas decisões fortemente contestadas, tornando-se alvo de campanhas públicas que denigram a sua actuação e caluniam a sua personalidade.
Em Janeiro de 1908 é descoberta uma conspiração contra a Coroa. São presos vários líderes republicanos e figuras conhecidas do meio político, enquanto o Rei assina um decreto que permite a deportação do reino de alguns opositores. O clima de insurreição civil aumenta a cada dia, com ataques à bomba a esquadras de polícia e violência nas ruas. O culminar de toda esta crise política e social deu-se a 1 de Fevereiro de 1908. No final da tarde desse dia, quando regressava de uma caçada em Vila Viçosa, na carruagem Real, acompanhado pela Rainha e pelos dois filhos, na sua trajectória entre o Terreiro do Paço e a Praça do Município, D. Carlos é alvejado a tiro mortalmente por dois elementos da sociedade secreta «Carbonária», juntamente com o príncipe herdeiro, D. Luís Filipe, que também sucumbe no atentado.
Terminava assim, desta forma trágica, o reinado do penúltimo Rei da quarta Dinastia. Um dos períodos mais conturbados da História Contemporânea de Portugal, que só por si ofusca a capacidade governativa e decisória de D. Carlos I e lhe retira injustamente, por vezes, os méritos que alcançou no campo científico e cultural.
Carlos Manuel Valentim
Bibliografia
DIAS, Carlos Malheiro, O Rei D. Carlos, Paris, 1914.
RAMOS, Rui, D. Carlos (1868-1908), Lisboa, Circulo de Leitores, 2006.
SALDANHA, Luíz Vieira Caldas, D. Carlos no dealbar da Oceanografia, Memórias da Academia de Marinha, Volume XXVI, Lisboa, Academia de Marinha, 1996, XIV, pp. 27-66.
[1] Exceptuando D. Sebastião, por razões diferentes, mas que se ligam ao tema de fundo da época em que de D. Carlos I viveu. Isto é, a independência nacional, e a viabilidade de Portugal enquanto nação independente.